Elisabeth Grimberg*
Em
2 de agosto de 2010, foi sancionada a Lei nº 12.305/2010, que institui a
Política Nacional de Resíduos Sólidos, fruto de 20 anos de luta por um
marco regulatório. Mas ela vem ao encontro dos mesmos desafios do começo
desse processo?
Em parte sim, quando a questão são os lixões presentes ainda em 50,8%
dos 5.565 municípios brasileiros, segundo a recém-publicada Pesquisa
Nacional de Saneamento Básico (2010). A cultura de negligência das
administrações públicas com o meio ambiente neste setor não é novidade, e
essa é uma questão emergencial a ser enfrentada. A nova lei, que
definiu o prazo de quatro anos para fechamento dos lixões, certamente
irá reverter este quadro lastimável.
Mas, nos últimos 10 anos de luta por uma política nacional para este
setor, o cenário mudou e surgiram novos desafios e atores. Criou-se o
Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis; organizaram-se inúmeros
fóruns com atores plurais em torno da consigna Lixo e Cidadania em
níveis nacional, estadual e municipal, entre outras redes, em que se
passou a defender e exigir um novo paradigma de gestão de resíduos de
caráter sistêmico no qual se entrelaçam os aspectos ambiental, social,
econômico, cultural, tecnológico e de saúde pública. A própria mídia
passou a cumprir um papel relevante, ao trazer para o centro do debate
soluções de caráter socioambiental pautadas pela sociedade e por
representantes de governos com visão sustentável de futuro.
Prevenção e precaução
Nesse contexto, o processo de formulação da política acontece e
termina por contemplar diretrizes que podem mudar radicalmente o padrão
de gestão e destinação de resíduos sólidos no país. Destacam-se como
aspectos positivos da lei o estabelecimento de diretrizes nacionais
centradas nos princípios da prevenção e precaução, ou seja, de padrões
sustentáveis de produção e consumo segundo a lógica da não geração,
redução, reutilização e reciclagem, além da disposição final
ambientalmente adequada dos rejeitos em aterros sanitários. A lei
diferencia claramente o que é lixo, ou seja, rejeito, a fração dos
resíduos que não tem possibilidade de ser reaproveitada – 5% de tudo que
é gerado1 – do que é passível de reaproveitamento, trazendo
instrumentos importantes para a estruturação de outro patamar de gestão,
como a exigência de planos de resíduos sólidos em âmbitos nacional,
estadual e municipal que apresentem “metas de redução, reutilização e
reciclagem, com vistas a reduzir a quantidade de resíduos e rejeitos
encaminhados para disposição final ambientalmente adequada”. Os governos
estaduais e municipais terão prazo de dois anos para apresentar seus
planos de ação.
Outro instrumento que merece destaque como conquista da sociedade é a
instituição dos sistemas de logística reversa associados à
responsabilidade do setor empresarial: a lei exige que fabricantes,
importadores, distribuidores e comerciantes assumam responsabilidade
sobre os resíduos gerados. A expectativa é de que os acordos setoriais a
serem firmados entre poder público e setor empresarial viabilizem em
nível municipal a implementação de sistemas de coleta seletiva (e
triagem) previstos nos planos municipais de gestão integrada de resíduos
sólidos. Está prevista a possibilidade de o setor empresarial remunerar
o poder público municipal para realizar a logística reversa, o que é
bastante razoável, tendo em vista que diversas multinacionais, presentes
no Brasil, já praticam a responsabilidade compartilhada na gestão dos
resíduos sólidos em países da Europa.
Seja qual for o procedimento a ser adotado para a implementação do
retorno das embalagens pós-consumo para a cadeia de reciclagem, a aposta
é que haja a devida valorização das cooperativas de catadores, como
profissionais a serem contratados para prestar este serviço nas cidades.
A lei garante em 11 referências a participação legal das cooperativas e
associações de catadores, evidenciando o justo reconhecimento da
contribuição ambiental desse segmento ao longo de décadas. Aliás, esses
trabalhadores são genuínos agentes ambientais, que não só alimentam a
cadeia produtiva, permitindo sua crescente dinamização, como desenvolvem
um trabalho exemplar de educação ambiental junto à população. Vale
lembrar que, em 2007, com a aprovação da Política Nacional de Saneamento
Básico, também houve avanço ao ser criado um dispositivo para
viabilizar a entrada dos catadores nos sistemas de coleta seletiva, como
prestadores de serviços com dispensa de licitação.
Preços
Outro aspecto bastante positivo da lei são as medidas de incentivo à
formação de consórcios e viabilização da gestão regionalizada, o que
permitirá soluções com vistas a aumentar a capacidade de gestão das
administrações municipais, a ganhos de escala, com redução de custos no
caso de compartilhamento de aterros sanitários para disposição do
rejeito; e no caso de criação de centrais de comercialização regionais,
operadas por cooperativas de catadores, a possibilidade de ganhos de
escala (pela armazenagem dos materiais recicláveis oriundos de
cooperativas de diversos municípios) resultará em obtenção de melhores
preços.
A lei vem em momento oportuno, dado que houve um aumento de 8% na
geração de resíduos, de 2008 para 2009. Neste sentido, ainda há muito a
avançar quanto à mudança no padrão de produção, de maneira a reduzir ao
máximo os produtos descartáveis e de curta vida útil. Este ponto, que
envolve análise e avaliação do ciclo de vida do produto, deixou a
desejar na lei aprovada, porque com este instrumento o Estado poderia
exigir dos fabricantes que apresentassem os impactos dos seus produtos,
desde a extração da matéria prima até o pós-consumo, de forma a poder se
comparar, por exemplo, no caso das embalagens, qual o melhor material a
ser utilizado do ponto de vista ambiental. Estudos internacionais
indicam que as embalagens retornáveis (como o vidro que retorna para a
mesma finalidade) são a melhor opção ambiental, a partir do segundo ou
terceiro reuso.
A sociedade brasileira vai jogar um papel estratégico para a
implementação de políticas públicas com base na redução, reutilização e
reciclagem, dado que a pressão dos interesses ligados aos negócios da
incineração será grande. Isso exigirá a articulação daqueles que atuam
na afirmação do interesse público – garantia da saúde humana, do meio
ambiente e da justiça social (um milhão de catadores têm, na nova lei, a
possibilidade de exercer seu trabalho de forma digna e sustentável).
A regulamentação, prevista para ser concluída até 2 de novembro de
2010, deverá trazer metas, prazos e procedimentos para viabilizar (as
modalidades dos acordos setoriais entre a cadeia produtiva e o poder
público) a elaboração dos planos e a integração das cooperativas de
catadores. Um componente estratégico para o sucesso da lei será a
criação de mecanismos de fiscalização e controle social de todas as
medidas estabelecidas. Os estados terão um papel central no planejamento
e instrumentalização técnica e institucional dos gestores municipais,
bem como na fiscalização das ações a serem executadas. A importância da
participação da sociedade está indicada na lei, quando cria instrumentos
de controle social, tais como os órgãos colegiados municipais, além de
apontar os conselhos de meio ambiente e de saúde, já instituídos, como
instâncias a serem utilizadas na implementação das novas diretrizes de
políticas públicas.
A aposta é que o novo sistema funcione de forma integrada e
eficiente, trazendo as tão almejadas inovações para o setor dos resíduos
sólidos, especialmente na perspectiva da mudança de padrão de gestão e
destinação que reduza ao máximo o impacto ambiental do pós-consumo e, ao
mesmo tempo, induza mudanças no padrão de produção e consumo, tão
necessárias para o bem viver das atuais e futuras gerações.
* Elisabeth Grimberg é coordenadora executiva e de ambiente urbano do Instituto Pólis.
[1] Paul Connett, professor emérito de Química da St. Lawrence
University, faz esta afirmação em encontro de integrantes da Aliança
Global Anti-Incineração/ Aliança Global para Alternativas à Incineração
(Gaia), entre 22 e 24 de agosto de 2008, em Cuernavaca, Morelos, México.
(Instituto Akatu